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14 de nov. de 2018

Livro x Série de TV- episódio 2 : “Do no Harm”




Livro x série de TV- episódio 2 : “Do no Harm”




Contém spoilers do episódio e dos livros



“Pessoas oprimidas não podem permanecer oprimidas para sempre”
Martin Luther King 



O título desse segundo episódio “Do no harm” significa “fazer mal algum/fazer nenhum mal” em referência ao código de ética médico em que isso é prometido, sendo uma frase derivada do juramento de Hipócrates. Ele adaptou a parcialmente a parte IV (River Run) do romance que vai dos capítulos dez a um pedaço do treze. 


- River Run



O capítulo dez (Jocasta) inicia-se com a chegada dos Fraser a River Run. Enquanto o Sally Ann vai atracando, os passageiros sentem um forte cheiro de terebintina e rum que leva a Jamie e Ian a uma discussão sobre discernir qual é qual. Jamie fala para Ian se arrumar, e eles conversam sobre o que terão para jantar e se Jamie contará a Jocasta sobre o ataque dos piratas. No episódio, Jamie fala com Claire sobre a morte de Lesley (o que não ocorre no livro, uma vez que ele não estava presente) e sente-se culpado por ter ajudado Stephen Bonnet a escapar da justiça, enquanto Claire o consola. No livro, além de jovem Ian, Fergus também acompanha os Fraser; no episódio, Fergus está ausente. A emoção de Jamie ao se encontrar com sua tia foi expressa tanto no livro quando nas telas, Claire acredita que isso ocorra pela semelhança de Jocasta com a mãe de Jamie. No episódio, Jamie afirma que elas são realmente muito parecidas. Em ambas as mídias, Jocasta expressa a surpresa com o tamanho do sobrinho, porém no livro ela ainda o compara a Dougal. A família entra em River Run em meio a brincadeiras de Fergus e Ian, como na série Fergus não estava presente, isso não ocorre, e Jocasta logo é apresentada a Rollo diferentemente do livro. No episódio, nesse primeiro encontro a beira do rio, Jocasta comenta sobre sua cegueira, para explicar o porquê Ulysses teve que informa-la sobre o ramalhete que jovem Ian carregava como presente. Isso, entretanto, não ocorre no material original, sendo Claire quem nota a deficiência visual algumas cenas mais a frente. A parte da conversa na sala entre Jocasta, Jamie e Claire é semelhante a do livro, salvo que neste ela é mais longa, englobando lallybroch. Jocasta fala em refazer a fortuna de Jamie mais como uma torcida do que como bajulação como foi na série e jovem Ian encontra na sala quadros que foram pintados pela tia-avó. Enquanto na adaptação jovem Ian adentra a sala com um Rollo fedendo a gambá; no livro, eles começam a perceber a chegada do gambá pela agitação de Rollo, e Jamie acreditava ser um animal perigoso. Foi nessa confusão do gambá, em que Jocasta não conseguia entender o que estava acontecendo, que Claire percebeu a cegueira dela. Essa percepção é confirmada por Jocasta quando vão todos dá um passeio (exceto Fergus que pretende ir a cidade enviar notícias a Marsali na Jamaica) e ela comenta sobre apenas conseguir enxergar luzes. Dra. Fraser passa então a matutar sobre um possível diagnóstico para a cegueira de Jocasta, o que por enquanto ainda não aconteceu nas telas. É nesse passeio a cavalo que Jocasta fala aos Frasers o que River Run produz; nas telas, eles apenas estão passeando pelo jardim e é também durante a cavalgada para visitar a fábrica de terebintina que os Fraser conhecem Clarence, uma mula da senhora Cameron que acaba sendo utilizada por eles mais a frente, e na fábrica, eles encontram pela primeira vez com Farquard Campbell (juiz) e tenente Wolff (que facilitava os negócios de River Run com a marinha britânica). No episódio, o tenente Wolff aparece na casa em River Run para falar sobre negócios com Jocasta. Por enquanto tenho achado o modo como Jocasta vem sendo interpretada nas telas muito dócil em comparação à maneira como ela descrita nos livros. Há menções de Jamie sobre a esperteza que ela herdou dos Mackenzies, porém ela parece uma senhora doce e calma, e Jocasta Cameron não tem nada de doce e calma, a não ser que seja para alcançar algum objetivo. Espero que essa seja uma forma de trazer uma apresentação inteligente da personagem, meio que para enganar a audiência, uma vez que era comum ela criar essa imagem de simpatia e educação, e mais a frente apresentem-na com mais do seu verdadeiro caráter: uma mulher forte, astuta e teimosa, como uma Mackenzie. 



“‘Os Fraser são teimosos como rochas’, ele havia dito. ‘ E os Mackenzie são encantadores como cotovias no campo... mas também estatutos como raposas.’”


Nesse dia da cavalgada, Fergus ao retornar da cidade finda por trazer cartas de Ian e Jenny para Jamie. Nelas, é revelado o desejo de Ian pai de que o jovem Ian continue nas colônias com Jamie para evitar que seja recrutado para o exército e assim colocando fim no dilema do retorno do rapaz, que já havia manifestado a vontade de continuar com os tios. As cartas não apareceram neste episódio, mas é algo que pode ser facilmente encaixado em algum dos próximos. Ainda no capítulo dez, comenta-se que o tenente Wolff havia pedido Jocasta em casamento logo após a morte de Hector, não por interesse nela, mas pelas terras; e que ela havia desmaiado para fugir de uma resposta. Já na série, enquanto espera Phaedre arrumar o vestido de Claire, Jocasta responde a jovem que os interesses do tenente nela são meros rumores. 

- Rufus e o dilema de Claire


A reunião que Jocasta organiza em homenagem ao sobrinho é algo que no livro sucede após um mês da chegada dos Fraser a River Run (no capítulo onze- a lei do derramamento), enquanto na série é realizada ainda no mesmo dia. Nesse período de um mês, Claire passava seus dias aprendendo a fiar e evitando os escravos, enquanto Jamie se ocupava da auxiliar Ulysses na administração das contas da fazenda. No dia em que Jocasta estava falando sobre o jantar, Farquard Campbell aparece em River Run para informar acerca de um acidente na serraria e solicitar os remédios de Claire. Ele insistia que a presença dela não era necessária, uma vez que seu marido poderia levar e administrar os medicamentos e que não era uma situação adequada para senhoras. 


“Jocasta se levantou antes que eu pudesse protestar, segurando o braço de Campbell.

— O que foi? — perguntou ela. — Foi um dos meus negros? Byrnes fez alguma coisa?

Ela era mais alta do que ele cerca de cinco centímetros. Campbell tinha que olhar para cima para responder a ela. Eu via as rugas de tensão em seu rosto, e ela também sentiu a situação. Seus dedos apertaram o tecido da manga do casaco dele.

Ele olhou para Ulysses e então para Jocasta. Como se tivesse recebido uma ordem direta, o mordomo se virou e saiu da sala, caminhando suavemente como sempre.

— Foi uma matança, Jo — sussurrou ele. — Não sei quem, nem como, nem a gravidade. O garoto de MacNeill me chamou. Mas quanto ao outro... — Ele hesitou e então deu de ombros. — É a lei.

— E você é o juiz! — rebateu ela. — Pelo amor de Deus, não consegue fazer nada? — Sua cabeça se virou, tentando fixar os olhos cegos nele para convencê-lo.

— Não! — respondeu ele de forma brusca, e então, mais delicadamente, repetiu: — Não. — Tirou a mão dela da manga de seu casaco e a segurou com força. — Você sabe que eu não posso — continuou ele. — Se eu pudesse...

— Se você pudesse, não faria — disse ela com amargura. Puxou a mão que ele segurava e deu um passo para trás, punhos fechados ao lado do corpo. — Vá em frente, então.

Eles o chamaram para ser o juiz. Vá e faça o julgamento. — Ela se virou e saiu da sala, com as saias farfalhando.

Campbell a observou se afastar e então, quando a porta foi fechada, suspirou com uma careta e se virou para Jamie.

— Hesito em pedir tal favor, sr. Fraser, já que nos conhecemos há pouco. Mas eu gostaria muito de sua companhia para essa tarefa. Já que a sra. Cameron não pode estar presente, ter o senhor lá como representante dela no assunto...

— Qual é o assunto, sr. Campbell? — perguntou Jamie.

Campbell olhou para mim, desejando que eu saísse. Como não me mexi, ele deu de ombros, tirou um lenço do bolso e secou o rosto.

— É a lei desta colônia, senhor, que se um negro ataca um branco e o fere, ele deve morrer por esse crime. — Ele parou, relutante. — Felizmente, essas coisas são raras. Mas quando ocorrem...

Campbell parou, contraindo os lábios. Então, suspirou, e com um tapinha no rosto corado, guardou o lençol.

— Tenho que ir. Vem comigo, sr. Fraser?

Jamie permaneceu mais um tempo parado, observando o rosto de Campbell.

— Vou — disse ele abruptamente.

Dirigiu-se ao armário e abriu a gaveta de cima, onde o falecido Hector Cameron guardava as pistolas.

Ao ver isso, eu me virei para Campbell.

— Há perigo?

— Não sei dizer, sra. Fraser. — Campbell encolheu os ombros. — Donald MacNeill me disse apenas que houve um conflito no moinho e que se tratava de um derramamento de sangue, de acordo com a lei. Ele pediu para que eu fosse fazer o julgamento e supervisionasse a execução, e então partiu para reunir os outros donos de propriedades antes que eu pudesse conseguir mais detalhes.

Ele parecia triste, mas conformado.

— Execução? Está dizendo que pretende executar um homem mesmo sem saber o que ele fez? — Na minha agitação, eu havia derrubado o cesto de novelos de Jocasta. Bolinhas de lã colorida se espalharam por todos os lados, pulando no carpete.

— Eu sei o que ele fez, sra. Fraser! — Campbell levantou o queixo, corado, mas, controlando-se, engoliu em seco. — Peço seu perdão, senhora. Sei que chegou há pouco tempo. Considerará algumas de nossas atitudes difíceis e até bárbaras, mas...

— Isso mesmo, eu as considero bárbaras! Que tipo de lei condena um homem...

— Um escravo...

— Um homem! Condena um homem sem um julgamento, sem nem ao menos uma investigação? Que tipo de lei é essa?

— Uma lei ruim, madame! — respondeu ele. — Mas, ainda assim, é a lei, e tenho que cumpri-la. (...)”





A situação em questão foi a mostrada no episódio em que Rufus por ter atacado o capataz foi preso a um ferrão. No livro, Claire finda por ir com Jamie, pois quando ele se recusa a atender o pedido dela para não fazer parte dessa barbaridade, ela decide acompanha-lo para prestar os primeiros socorros. Em “Do no harm”, sem saber exatamente com o que estava lidando, Claire não pensa duas vezes e se oferece para ir com o marido atender a quem estava ferido, pois de pronto já se sabia que o capataz Byrnes havia perdido a orelha. Quando se encontram com MacNeill na estrada, ele comenta sobre a presença de Claire por não ser uma situação adequada a mulheres, enquanto Jamie afirma que sua mulher é uma curandeira, uma ban-lighiche, e por isso sua presença será útil. Na série, Claire acompanhar Jamie não traz questionamentos, na verdade, esperava-se que por ter conhecimentos médicos ela ajudasse com a execução do escravo. No capítulo, MacNeill explica que Rufus havia tentando decepar a cabeça de Byrnes após uma discussão, porém falhou e só conseguiu arrancar-lhe uma orelha. Acrescentam-se comentários sobre a ineficiência de Byrnes, o qual havia sido contratado por Hector, e que Jocasta iria ficar triste por perder Rufus. 


“Então, perdi inteiramente a consciência da multidão. Toda a minha atenção concentrou-se ao lado da serraria, onde a haste de um guindaste fora armada às pressas, com um enorme gancho curvo para levantar toras de madeira ao nível do tablado da serra. Empalado no gancho estava o corpo de um homem negro, contorcendo-se na terrível imitação de uma minhoca. O cheio de sangue, quente e adocicado, impregnava o ar; havia uma poça na plataforma embaixo do gancho.”


Ao contrário do que acontece na série, Claire congela completamente com a cena e não é capaz nem de pedir ajuda a Jamie. Ele, no entanto, age por conta própria, sacando as pistolas e ordenando que o homem fosse retirado do gancho. Logo quando Claire começa a analisar o caso, ela pergunta a Jamie se caso ela salve Rufus, deixarão ele viver, e Jamie lhe responde que não. É nesse momento, ainda com o corpo do homem no chão, que ela decide acabar com o seu sofrimento. Nem ao menos Jamie sabe dessa decisão de Claire; na série, é ele quem a convence a fazer isso quando eles se veem obrigados a entregar Rufus para evitar a invasão de River Run. Na adaptação, eles estendem essa decisão por todo o episódio, realizam uma cirurgia e mostram todo um comportamento barbárico da população para executar este homem, além dos comentários de Ulysses sobre ter sido melhor deixa-lo morrer quando Claire acabou com os procedimentos médicos. Muito provavelmente, a produção quis deixar a escolha mais difícil e emocional para Claire ao fazê-la conversar com ele, saber sobre sua família e sua vida, assim como ao esticar o dilema fazê-lo parte dos telespectadores também e deixar a morte mais tocante. Ou talvez colocaram a cirurgia de Rufus em substituição da de John Quincy Myers a fim de não divergir do teor médico presente nesta parte. Entretanto, enquanto a operação de John é meio cômico e feita na frente dos convidados de Jocasta, a delicada circunstância de Rufus é extremamente tocante e privada. 



“Seus olhos estavam embaçados. Tentei olhar dentro deles, para fazer com que me visse. Por quê?, eu me perguntava, mesmo quando me inclinei sobre ele e chamei seu nome. Eu não podia perguntar-lhe se essa seria sua escolha – eu a fizera por ele. E tendo feito essa escolha, não podia pedir sua aprovação ou perdão.”


- A festa






Na série a festa havia ocorrido antes do empalamento de Rufus, no livro ela acontece após. E Jocasta até comenta que servirá para tirar a mente deles da tristeza. Seu enredo se desdobra no capítulo doze (a volta de John Quincy Myers). A cena em que Phaedre ajeita um vestido para o jantar ocorre então aqui. A descrição que Phaedre faz sobre Claire a pedido de Jocasta também aparece de forma semelhante a das telas, mas como a cor dos olhos de Claire e de Caitriona não são as mesmas, neste quesito a descrição diverge. No jantar, Claire mais uma vez se encontra com Phillip Wyllie, que flerta descaradamente com ela (Claire o havia conhecido na celebração nos Lillingtons), apesar de não ter grande importância agora, ele criará problemas no quinto livro. John Quincy Myers invade a recepção de Jocasta para dizer a Claire que já está suficientemente bêbado para que ela faça sua cirurgia nos testículos. Quem leu o livro x série do episódio anterior sabe que apesar de na série ele aparecer pela primeira vez neste episódio ao ajudar jovem Ian a dar banho em Rollo, no livro ele auxiliou os Fraser no caminho para River Run e recebeu um possível diagnóstico de Claire sobre a necessidade de cirurgiá-lo. Com insistência, Claire finda por realizar a operação no salão de Jocasta em meio a vários comentários dos convidados sobre a anatomia de Quincy. Jamie tinha permanecido estranho durante o jantar, entrando e saindo do aposento, e no capítulo treze (um exame de consciência) ele comenta o porquê: Ulysses havia lhe informado do desejo de Jocasta anunciar na festa que Jamie seria seu herdeiro. No seriado, Ulysses não passa a informação e como também não há a distração da cirurgia, Jocasta acaba por fazer o anúncio. Jamie e Claire então vão discutir sobre a possibilidade de herdarem River Run a beira do rio em um passeio a barco, o que envolve o debate sobre Claire poder ser dona de escravos, uma vez que seria impossível libertá-los enquanto Jocasta vivesse e talvez até mesmo depois. É Jamie quem explica a Claire sobre as dificuldades de se libertar escravos, o que no episódio é feito por Campbell. Claire lhe fala que não pode dizer o que ele deve fazer, é escolha dele e a isso ele responde: 


“- Seu rosto é meu coração, Sasseanch – ele disse suavamente- e meu amor por você é minha alma. Mas você tem razão, você não pode ser minha consciência.”


Vi alguns comentários de que o episódio teria sido monótono, para mim foi longe disso, preferi este ao anterior. Tenho uma opinião meio dúbia quanto a cena em que os fazendeiros da região vão exigir a entrega de Rufus porque ficou parecendo uma cena de A Bela e a Fera, o que não sei se foi a intenção. Questionamentos morais me são interessantes e a escolha de mostrar de forma mais prolongada não apenas os horrores da escravidão, mas também das leis injustas foi acertada. Eles não podem ser esquecidos ou escanteados.E também a dificuldade de duas pessoas ao tentar fazer a diferença. De duas pessoas que enxergam além da moral da época. Só porque algo é determinado em lei não significa que seja correto. A escravidão um dia foi legal. O apartheid na África do Sul um dia foi legal. A segregação racial nos Estados Unidos um dia foi legal. Existem lugares do mundo em que é legal apedrejar mulheres adúlteras ou que foram estupradas. Há países em que ser homossexual é ilegal. Já houve uma época em que mulheres eram proibidas de estudar ou trabalhar. Se não fosse o pensamento de pessoas vanguardistas e revolucionárias, rebeldes, que questionam essas leis, e as desrespeitam, talvez elas nunca fossem mudadas. EX INJUSTA NON EST LEX, em português, a lei injusta não é lei. Essa frase é de Santo Agostinho. E completava Martin Luther King “é nosso dever moral, e obrigação, desobedecer a uma lei injusta”. De certa forma, foi isso que Claire e Jamie desejavam trazer a tona: a indignidade da lei e a crueldade da escravidão, mas é difícil apelar à razão e à empatia daqueles que não sabem o que é isso ou são egoístas demais para pensar além do seu próprio conforto. Farquad Campbell é um personagem que muito me incomoda nesses capítulos do livro com essa sua personalidade legalista, entretanto na série Tenente Wolff conseguiu ser mais desprezível que ele. 

Concluo então, deixando como reflexão em cima dos fatos narrados neste episódio, outra citação de King, em sua carta da prisão de Birmingham: 


“Esperamos por mais de 340 anos por nossos direitos constitucionais e concedidos por Deus. As nações da Ásia e da África estão dirigindo-se com uma velocidade a jato rumo à conquista da independência política, mas nós ainda nos arrastamos a passo de cavalo e de charrete rumo à conquista de uma xícara de café em um aparador. Talvez seja fácil àqueles que nunca sentiram os dardos perfurantes da segregação dizer “espere”. Mas quando você viu bandos perversos lincharem suas mães e pais à vontade e afogar suas irmãs e irmão a seu capricho; quando você viu policiais cheios de ódio amaldiçoarem, chutarem e até matarem seus irmãos e irmãs negros; quando você vê a vasta maioria de seus vinte milhões de irmãos negros sufocando-se em uma jaula hermética da pobreza em meio a uma sociedade de abundância; quando você de repente descobre sua língua travada e sua fala gaga ao tentar explicar a sua irmã de seis anos de idade por que ela não pode ir ao parque de diversões público cuja propaganda acabou de passar na televisão, e vê lágrimas jorrando dos olhos dela quando lhe é dito que o Funtown está fechado para crianças de cor, e vê ameaçadoras nuvens de inferioridade começando a se formar no pequeno céu mental dela, e a vê começar a distorcer sua personalidade ao desenvolver um rancor inconsciente contra as pessoas brancas; quando você tem de inventar uma resposta a um filho de cinco anos de idade que está perguntando: “papai, por que as pessoas brancas tratam as pessoas de cor tão mal?”; quando você faz uma viagem através de seu estado e descobre ser necessário dormir noite após noite nos cantos desconfortáveis de seu carro porque nenhum motel o aceita; quando você é humilhado entra dia sai dia por sinais irritantes dizendo “branco” e “de cor”; quando seu prenome torna-se “neguinho”, seu nome do meio torna-se “menino” (não importa sua idade) e seu sobrenome torna-se “John”, e sua mulher e mãe nunca são chamadas pelo título respeitável de “Sras.”; quando você é perseguido de dia e assombrado à noite pelo fato de que você é um negro, vivendo constantemente na ponta dos pés, sem saber exatamente o que esperar em seguida, e é atormentado por medos interiores e ressentimentos exteriores; quando você está sempre lutando contra uma impressão degradante de “não ser ninguém” – então você entenderá porque achamos difícil esperar. Chega um momento em que a capacidade de suportar esgota-se, e os homens não estão mais dispostos a mergulhar no abismo do desespero. Espero, senhores, que vocês possam compreender nossa impaciência legítima e inevitável. Vocês manifestam uma boa dose de ansiedade quanto à nossa disposição de violar as leis. Essa é certamente uma preocupação legítima. Como nós exortamos tão ativamente as pessoas a obedecerem à decisão de 1954 da Suprema Corte que baniu a segregação em escolas públicas, à primeira vista pode parecer um tanto paradoxal que nós conscientemente violemos leis. Também se poderia perguntar: “Como vocês podem advogar a violação de certas leis e a obediência a outras?” A resposta está no fato de que existem dois tipos de leis: as justas e as injustas. Eu seria o primeiro a advogar a obediência a leis justas. Tem-se uma responsabilidade não só legal como também moral de obedecer a leis justas. De modo contrário, tem-se uma responsabilidade moral de desobedecer a leis injustas.”




Por Tuísa Sampaio

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2 comentários:

  1. Que análise maravilhosa! Já estava com saudades de assistir um episódio e correr aqui no site para ler e acompanhar suas comparações! Esse episódio foi bastante denso e reflexivo. Algumas alterações se fazem necessárias para a adaptação do livro para a série, afinal há muito conteúdo na obra escrita e seria inviável ver 100% na tela. O que me incomoda é quando trocam as falas dos personagens pois são características próprias de cada um, um reflexo de sua criação e das suas experiências vividas. Nem sempre essa troca me convence... Mas enfim, o importante é que essa temporada terá muitas cenas emocionantes por vir!!!

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