Contém Spoilers
Claire e Jamie. Brianna e Roger.
Jovem Ian e Rollo. As aventuras dessa família e de vários outros personagens continuam
nesse sexto romance da série Outlander, Um Sopro de Neve e Cinzas (título
original: A Breath of snow and ashes). O ano inicial é de 1773, o livro,
dividido em um prólogo, doze partes e dois epílogos, tem como abertura o
momento em que Jovem Ian escuta um grupo de homens passando próximo ao local
onde estava na floresta e precisa se esconder, levando-o a ter uma conversa com
Deus, e o encontro dos Frasers com uma cabana queimada cheia de cadáveres em
algum lugar da colina. Quando retornam à sua casa, uma reunião com o Major
Macdonald os aguarda, trazendo notícias de novos colonos escoceses e um convite
para Jamie tornar-se um agente entre os índios.
Como em todo romance dessa série,
novos personagens surgem e dentre eles está Bobby Higgins, enviado com uma
carta para Jamie por Lorde John, Bobby havia sido marcado como assassino no
rosto, condenação que Lorde John considerava injusta. Infelizmente, Bobby é
ameaçado pelos Browns e seu comitê de segurança que não acreditam em sua
inocência e não querem um homicida nas redondezas, ansiosos por mostrar
efetividade em suas ações. A decisão de Jamie de tornar-se um agente
indigenista, então, apesar dos possíveis riscos, ocorre justamente para impedir
que Richard Brown o seja. Tentando descobrir mais sobre a guerra que está por
vir, Jamie conversa com Roger sobre o que ele sabe que vai acontecer, o que o leva
a lembrar-se de uma vidente que conhecera em Paris e que havia lhe dito que ele
iria morrer nove vezes antes de ir para o túmulo. Essa previsão é uma quem vem
levantando discussões nos fóruns de fãs de quais seriam as mortes de Jamie e em
qual vida ele estaria. Como já vimos e também como Claire conclui, Jamie Fraser
não é um homem fácil de se matar.
Capa atual da edição americana
Dentre as trocas de
correspondências entre Lorde John e os Fraser, Brianna recebe fósforo, uma
substância que havia requisitado ao amigo, para que pudesse fabricar palitos de
fósforo, facilitando assim o processo de acender qualquer fogo que fosse
necessário. Um dos pontos que eu gosto muito em Brianna é esse seu lado
“inventora/construtora”. Ela consegue facilmente trazer seus conhecimentos de
química e física do século XX, além de sua habilidade com desenho para melhorar
a sua vida e de toda a sua família, mesmo que isso a faça ser vista como
“estranha” pelas pessoas das redondezas. Um exemplo, além dos fósforos, é sua
tentativa de fazer Robin McGillivray montar as armas que ela havia desenhado,
conhecimento incomum até para meninas de sua época. Ela mostra seu lado
progressista com orgulho e (na maioria das vezes) não dá ouvido aos comentários
maldosos. Obviamente, isso vem um pouco de Claire, entretanto, as “inovações”
trazidas por Claire ao século XVIII, são no geral, relacionadas à medicina,
como a sua produção de penicilina que se inicia em Tambores do Outono e as
tentativas da criação de éter em Um sopro de Neve e Cinzas para poder adormecer
os pacientes em quem precisa realizar cirurgias, como a de apendicite que ela
faz em Aidan McCallum. Também não é possível deixar de lado a influência que o
conhecimento de Frank sobre a volta de Claire ao passado fez com que ele
ensinasse coisas incomuns à sua filha para uma mocinha da cidade dos anos 60-
com receio que ela também viajasse- como andar a cavalo e atirar. Brianna é uma
mulher bastante independente, assim como sua mãe e isso ao longo desse livro,
acaba influenciando seu casamento com Roger, que não é tão moderno quanto
Jamie, no quesito adaptar-se à individualidade de sua esposa. Eu entendo que a
diferença maior é que para Brianna foi muito mais fácil encaixar-se no dia a
dia de Fraser’s Ridge do que para ele, e isso faz com que ele se sinta inútil
diante dela, enquanto Jamie nunca enfrentou esse problema. O desejo de Roger de
tornar-se ministro finda por lhe dar um propósito que facilita a comunicação
entre o casal, pois permite a Roger encontrar sua própria independência e
sentir-se mais útil dentro de sua comunidade. Brianna mostra à lealdade que tem
ao marido estando pronta para apoiá-lo em sua escolha de carreira e se dispondo
a ajudar no que for preciso para que ele seja bem-sucedido.
Capa da primeira edição a ser publicada em português no Brasil pela editora Rocco (dividida em 2 tomos)
Esse é um livro que mostra, assim
como a Cruz de Fogo, muito da comunidade dos Frasers, entretanto com mais ação
e sem a monotonia do romance anterior. Nele, Claire vai conseguir uma nova
aprendiz e assistente em Malva Christie- com quem cria um carinho, para depois
ser traída de uma forma covarde, levantando dúvidas acerca da lealdade de Jamie
- e um paciente extremamente teimoso em seu pai- que se revelará leal à Claire
e aos sentimentos que havia escondido dela, em busca de salvá-la de uma
sentença injusta por um crime que a Sra. Fraser não havia cometido. Três dos acontecimentos
principais do enredo cada vez mais intricado são o sequestro de Claire por uma
gangue - onde ela finda por encontrar outro viajante do tempo-mais à frente; o
de Brianna, por Stephen Bonnet e o momento em que toda a família aguarda o
suposto incêndio que deveria matar Jamie e Claire, mas que não ocorre na data
prevista no jornal, e sim tempos depois, tendo todos os presentes –Jamie e
Claire inclusive- saído com vida, mas resultando na destruição de sua casa. Jamie,
ademais, tem que lidar com a decisão de virar um rebelde, pois ele sabe que a
guerra será ganha por eles, mas qual seria o momento certo para se declarar? E
a descoberta da verdadeira paternidade de Jemmy, além de uma nova gestação de
Brianna estão entre os pontos de destaque dos enredos dos Frasers e Mackenzies.
O crescente companheirismo entre
Jamie e Roger também chama atenção. Quando se conhecem em Os Tambores do Outono,
a inimizade causada pelo mal-entendido da identidade de Roger faz com que mesmo
com devidas emendas realizadas, eles dois não se deem lá muito bem. Ao longo
dos livros seguintes, eles vão gradativamente tornando-se parceiros e
confidentes. Em Um sopro de Neve e Cinzas, ambos aconselham-se quando
necessário e uma relação de pai e filho vai se materializando em suas devidas
proporções, mais ligada ainda quando se unem para resgatar Brianna, o laço de
lealdade que os une.
O nascimento do quarto filho de
Fergus e Marsali traz momentos de conflito dentro da comunidade, sendo ele um
anão, em um assentamento de pessoas interioranas e supersticiosas, medo e
preconceito afloram. E assim cada vez mais os Frasers se ligam para proteger
uns aos outros. Como em todo livro dessa série, Diana escolheu uma palavra para
ser tema e em Um Sopro de Neve e Cinzas foi lealdade. Sobrevivência seria um
sub-tema que ela quase usou como definição, mas a lealdade ainda estava acima,
por isso que ao longo do texto venho destacando esses dois pontos. Acredito que
ambos estejam fortemente interligados pelo livro. O pequeno Henri-Christian,
filho caçula de Fergus e Marsali tem a lealdade de seus pais e outros membros
de sua família, mas precisa lutar para sobreviver dentro de Fraser’s Ridge.
Fergus sente que não pode ser o homem que eles precisam, em uma área onde o
modo de vida é a agricultura e ele tem apenas uma mão, o desespero então o
domina. A saída para a sobrevivência da família será um trabalho na cidade,
onde há menos preconceito e Fergus poderá realizar o ofício de tipógrafo.
Lizzie é uma personagem com um
desenrolar de acontecimentos peculiares neste livro. E quando digo que o
romance fica cada vez mais intricado (e a meu ver isso vem acontecendo ao longo
dos livros, principalmente a partir de Tambores do Outono) é porque mesmo com a
maioria das cenas sendo de Jamie e Claire ou relacionadas a eles, tramas
paralelas fortes surgem. Em Um Sopro de Neve e Cinzas, além da história de
Roger e Brianna que caminha quase em pé de igualdade com Jamie e Claire, são
muito presentes em determinados momentos da trama, a de Fergus e Marsali, Ian e
a luta para superar seu passado com os Mohawks e o romance de Lizzie com os
gêmeos Beardsleys, que choca Fraser’s ridge, pelo conceito de poliamor não ser
um conhecido no século XVIII.
O nascimento da filha de Roger e
Brianna, Mandy, faz com que eles tenham que tomar a decisão de voltar ao século
XX, uma vez que a menina precisa de uma cirurgia cardíaca para sobreviver, a
qual Claire não tinha condições de realizar no tempo em que estavam e com os
recursos que tinham. Com a partida dos Mackenzies e a destruição da casa dos
Frasers, Claire e Jamie decidem voltar à Escócia para trazer a prensa de Jamie
para as treze Colônias e entrar na luta da revolução americana. Na conclusão do
livro, temos um relance da vida de Roger, Brianna e seus filhos em Lallybroch,
onde se estabeleceram- no século XX- e a explicação de como a data foi escrita
errada no jornal que anunciou a morte equivocada de Jamie e Claire.
Capa da edição atual brasileira publicada em volume único pela editora Arqueiro
Dentre as referências literárias
que podem ser encontradas no livro, está o título da quinta parte “Great
Unexpectations” (Grandes Inesperanças), a qual provavelmente relaciona-se com o
título de Charles Dickens “Great Expectations” (em português: Grandes
Esperanças). Não é à toa que Dickens foi um dos autores a quem Gabaldon dedicou
o livro. Eu já comentei em resenhas anteriores, mas ao longo da série existem
várias referências literárias e citações. Muito comum além de quotes bíblicos,
são também os de Shakespeare, principalmente Hamlet e O mercador de Veneza.
Infelizmente, como a maioria deles não é referenciado em uma nota de rodapé ou
no próprio texto- e as inúmeras traduções do dramaturgo britânico também
dificultam o reconhecimento- é difícil para o leitor encontrar todas.
Uma curiosidade acerca da parte
histórica dos livros de Outlander é que os nomes dos governadores da Carolina
do Norte que aparecem desde Tambores foram mantidos, e eles realmente
existiram. Pode parecer obvio para alguns, mas eu imaginei que William Tryon e
Josiah Martin fossem invenção da cabeça de Diana, porém sua pesquisa histórica
nunca decepciona, e até onde eu vi todos os chefes de milícias citados nos
livros (coronéis, capitães e etc...) também são reais. Certamente, o
comportamento deles diante dos Frasers foi realmente obra da criatividade da
autora, mas seus atos históricos, não. Josiah Martin, que aparece em Um Sopro
de Neve e Cinzas, foi o último governador da Carolina do Norte antes da
revolução americana. Outro personagem histórico importante a fazer aparição em
Um sopro de Neve e Cinzas foi Flora MacDonald (especificamente em uma recepção
em River Run), famosa por ter ajudado o príncipe Charles Stuart a fugir disfarçado
de mulher após a derrota na batalha de Culloden.
Em um livro no qual lealdade e
sobrevivência se entrelaçam, uma mente estratégica como a de Jamie Fraser é
extremamente poderosa. É graças a ele que muitos dos conflitos são
solucionados. A sua lealdade para com Claire e para com a sua família é
absolutamente admirável, mas sempre esperada. Lindo foi também ver relances da
sempre presente lealdade de Lorde John para com seu amigo Jamie em suas trocas
de cartas em meio à guerra iminente, a qual pretende testar os laços que os
unem. Com a Revolução Americana cada vez mais próxima, essas lealdades devem
ser mais expostas e as tensões irão aumentar. Um Sopro de Neve e Cinzas é um
livro forte e cheio de ação, mas também repleto de amor e respeito aos laços
familiares e às escolhas que precisamos fazer para sobreviver, sabendo dosar na
medida certa a calmaria do dia a dia do assentamento, com os embates que a
disturbam.
REFERÊNCIAS:
GABALDON, Diana. Um sopro de neve e Cinzas. São Paulo: Arqueiro, 2018.
GABALDON, Diana. The
Outlandish Companion. New York: Delacorte Press, 2015. V.2.
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