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5 de jan. de 2018

Outlander x Kindred

                                             

Outlander x Kindred


O texto abaixo pode conter spoilers dos três primeiros livros de Outlander 

Octavia Butler foi uma precursora na ficção científica, abrindo portas para outras mulheres em uma área dominada por homens. Tendo se tornado conhecida como “A primeira dama da ficção científica”, em 1979, ela publicou “kindred”, uma história sobre uma mulher negra que viaja no tempo da Califórnia dos anos setenta para o sul escravagista dos Estados Unidos antes da guerra de secessão (séc. XIX). Em 1991, Diana Gabaldon lança seu romance sobre uma enfermeira inglesa da segunda guerra que se transporta no tempo para a Escócia na iminência do levante jacobita de 1745. O que Dana (a personagem de Octavia) e Claire têm em comum além da habilidade de suas escritoras escreverem mulheres fortes em uma época dominada por homens? Quais são as diferenças que as tornam tão únicas? E qual o paralelo entre as teorias de viagem no tempo criadas pelas duas autoras? 


                                                            
Diana Gabaldon
                                           
Octávia Butler


          Dana “viaja” pela primeira vez no dia do seu aniversário de 26 anos, enquanto organizava seu apartamento com seu marido, Kevin. Ela não precisou entrar em um círculo de pedras como Claire, sua situação foi muito mais assustadora. Ela começou a passar mal, sentia-se tonta e nauseada e simplesmente desapareceu na frente de seu marido, reaparecendo alguns segundos depois. Para Kevin, foram segundos, mas Dana sabia que haviam se passado minutos. Nessa primeira viagem, Dana salva a vida de um menino ruivo chamado Rufus, mas acaba retornando ao seu tempo quando seu pai aponta uma espingarda para ela. No mesmo dia, Dana é chamada novamente para próximo a Rufus para novamente salvar o menino, entretanto desta vez ela passa horas e tem a oportunidade de conversar com um Rufus um pouco mais velho do que no incidente anterior, descobrindo assim que ela fora transportada para Maryland de 1815. Não apenas Dana havia viajado no tempo, como também no espaço. Dana passa a enfrentar um perigo muito maior que o de Claire, pois ela era uma mulher negra em meio a uma sociedade escravagista a qual se já não dava voz a mulheres brancas, considerava como corpos descartáveis as negras.

Acredito que a partir daí já temos dois grandes divisores de águas entre as obras de Butler e Gabaldon. O primeiro é que o tempo em Outlander se passava de forma paralela, um minuto no passado, era um minuto no presente, o que não ocorre em Kindred. Além disso, Claire precisava de um mecanismo (o círculo de pedras) para transportá-la e não conseguia voltar para a sua época a não ser por ele. Em segundo, Claire, como mulher branca, tinha uma ameaça diferente à sua liberdade. Ela pode ter sido mantido prisioneira pelos Mackenzie, porém fora tratada com o respeito que se era dado as mulheres da sociedade (até certo ponto). Ela ainda era vista como um ser humano; inferior, contudo, ser humano. Esse privilégio não foi concedido a Dana, cuja cor da pele fazia dela um alvo para um aprisionamento cruel, agonizante e desesperador. 


Claire conhece a escravidão como espectadora, e sente a dor por empatia, principalmente por ter um amigo negro e enxergar nos escravos a lembrança e a presença do homem a quem havia confiado sua própria filha. Dana, não. Ela era uma mulher dos anos setenta, que nasceu e viveu em liberdade toda a sua vida, que não conhecia violência de perto, e que foi arrastada para o inferno em que ser negra era ser pior que bicho. 

“Já tinha visto pessoas serem surradas na televisão e nos filmes. Já tinha visto sangue falso nas costas delas. Mas não havia ficado perto e sentido o cheiro de suor, nem ouvido as súplicas e as orações das pessoas humilhadas diante de suas famílias e si mesmas. Eu provavelmente estava menos preparada para a realidade do que a criança que chorava não muito longe de mim. Na verdade, ela e eu estávamos reagindo de modo muito parecido. Meu rosto estava banhado em lágrimas. E minha mente ia de um pensamento a outro, tentando me desligar das chibatadas. Em determinado momento, essa covardia extrema até trouxe algo útil. Um nome para os brancos que atravessavam a noite no sul pré-guerra, derrubando portas, surrando e torturando negros.
Capatazes. Grupos de jovens brancos que mantinham a ordem de modo ostensivo entre os escravos. Capatazes. Precursores da Ku Kux Klan.
(...)
- Você não tem modos, preta, vou te ensinar a me respeitar!
- (...) Quanto você deve valer?
Entrei em pânico. Era muito ruim que ele tivesse me pegado e estivesse me segurando. Agora, ele queria me entregar como fugitiva...” (Kindred)

Claire e Dana passam por outra experiência semelhante, ambas são quase estupradas por homens, quando perdidas em uma floresta em um tempo estranho. Claire, pelo ancestral do marido, o capitão Randall. Dana, por um capataz da fazenda do pequeno Rufus que tinha ido atrás de se aproveitar de outra negra, mas a encontrou no meio do camiho. Outro recurso usado por ambas autoras é o que eu chamo de “marido útil”. É muito comum em livros ou filmes escritos/dirigidos por homens encontrarmos a figura da “figura feminina útil”, ela não tem um papel realmente importante, existe apenas para auxiliar, dá suporte, trazer meios para que o protagonista resolva problemas, ou ser uma fonte de informações que justifique o comportamento do personagem principal. São figuras cuja vida própria não tem muita relevância para o leitor/telespectador, meros recursos. Octávia e Diana ao se utilizarem de heroínas femininas, realizaram uma inversão de papéis, criando o “marido útil”. Kevin, cuja profissão de escritor abre espaço para haver no lar do casal, inúmeros livros de não ficção que permitiram a pesquisa sobre a vida dos negros nos Estados Unidos no período escravagista[1]. O fato de ele ser branco é outra utilidade para Dana, uma vez que ela consegue levá-lo em uma de suas “viagens” e a cor da pele dele serve como proteção para ela; e Frank, cuja profissão de historiador, especialista no levante de 45, permitiu a Claire ter informações privilegiadas acerca do tempo para o qual fora transportada. Toda a existência de Frank, como personagem, orbitava ao redor de Claire. O que já não ocorre com Jamie. Ele é um par romântico, porém em pé de igualdade com a protagonista e cuja existência não se justifica como “estepe” para ela, nem como mero fornecedor de respostas e soluções. 


Claire não entende realmente como funciona o mecanismo da viagem no tempo. Ela descobre que apenas algumas pessoas podem realizar a travessia, portanto, deve estar relacionada a um algum traço genético. Além disso, em algum momento, ela chega à conclusão de que apesar de existir uma média de duzentos anos para as viagens, ela não é exata, pois o viajante é atraído por algo em um determinado tempo, uma pessoa que funciona como uma espécie de centro gravitacional. Na primeira viagem de Claire, ela é atraída para o tempo do ancestral do marido, o qual ele estava compulsivamente pesquisando. Na segunda, ela já viaja com o objetivo de retornar para Frank, conseguindo assim, alcançar seu tempo de origem. E na terceira, reencontrar seu grande amor, Jamie, é o seu imã para o período almejado. Em Kindred, Dana vai descobrindo aos poucos, o que a faz viajar, para onde, e por quê. Assim, como Claire, ela e Kevin formulam teorias. Mas para o leitor desta obra de Octávia, a fonte de atração já é um pouco óbvia até pelo próprio subtítulo colocado na tradução do livro para o português “Kindred: laços de sangue”. Ademais, a palavra “Kindred” pode ser traduzida para o português como “parentes”. Assim, durante a narrativa, a própria existência de Dana é colocada em risco, enquanto em Outlander, Claire nunca questionou se suas ações poderiam afetar o seu nascimento, mas sim, o de Frank. 

Quando lemos ou assistimos à Outlander, podemos compreender que as atitudes de Claire é que possibilitaram que o futuro que ela conhece, fosse como ele é, como se fizesse parte de um plano maior a presença dela naquele século. O mesmo ocorre com Dana. Ela teme um efeito pernicioso para si, porém com o desenrolar da história percebemos que são suas palavras, seus gestos e condutas que constroem o futuro que ela conhece e que justificam sua própria existência. 

Claire não viaja com um objetivo claro da primeira vez, mas acaba se apaixonado por um highlander ruivo que se torna o motivo de sua segunda viagem. Dana realiza várias viagens para encontrar Rufus, o seu ruivinho, a quem ela acompanha desde criança até a vida adulta. Entretanto, ao contrário de Outlander, Kindred não é uma história de amor. Não é este o foco narrativo. Por mais que Kevin e Dana sejam apaixonados, e existam obstáculos colocados no relacionamento deles que tornam a trama interessante e fazem os leitores torcerem pelo casal, como eu mencionei anteriormente, Kevin não estão em pé de igualdade com Dana em termos de protagonismo. É a história de Dana e de como por alguma força superior inexplicável, ela torna-se uma espécie de anjo da guarda para Rufus, a quem tenta constantemente ensinar um pouco de respeito aos negros, para que no futuro, ele seja uma pessoa melhor e trate os escravos de sua propriedade com o mínimo de dignidade. 

“Eu era a pior guardiã possível que ele podia ter, uma negra para cuidar dele em uma sociedade que via os negros como sub-humanos, uma mulher para cuidar dele em uma sociedade que via as mulheres como eternas incapazes. Eu teria que fazer tudo o que pudesse para cuidar de mim mesma. Mas o ajudaria da melhor maneira que conseguisse. E tentaria manter a amizade dele, talvez plantar algumas ideias em sua mente que ajudassem a mim e às pessoas que seriam seus escravos nos anos vindouros." (Kindred). 

Tanto Claire como Dana aprendem a se preparar para suas viagens. Claire carrega consigo em O Resgate no mar, penicilina, seringas e outras coisas que lhe poderiam ser úteis. Dana leva aspirina, um livro sobre escravidão, mapas, caneta e uma faca para proteção- o que os escoceses chamavam de “Sgian dubh”, a adaga escondida. Claire conquista o respeito dos Mackenzie por meio de suas habilidades de cura e sua lealdade para com o grupo. Dana, o apreço dos outros negros da fazenda por sua disposição de ajudar, e de se rebelar quando necessário, mesmo que em pequenas lutas. Por meio de seus ensinamentos, ela consegue devolver um pouco de dignidade e esperança aos seus companheiros. Até mesmo Tom, o cruel dono da fazenda de escravos, começa a olhar para ela com um misto de medo e um pouco de respeito pelos seus conhecimentos quando percebe que ela não é uma mulher comum. Ambas, Claire e Dana com sua visão do futuro conseguem carregar uma onda de mistério e misticismo que aos olhos daqueles do passado pode fazê-las parecer uma entidade sem explicação. 

Além disso, apesar de Dana não ter formação médica como Claire, seus conhecimentos sobre higiene e transmissão de algumas doenças fazem com que ela seja considerada como uma curandeira para os moradores da fazenda.

A opressão feminina não fica por conta apenas do silenciamento, objetificação e das tentativas de estupro. Claire e Dana levam surras mais de uma vez. A primeira por sua condição de mulher e curandeira, quando recebe chibatadas em Cranesmuir, no julgamento das bruxas, e anteriormente pelas mãos do próprio marido que à época acreditava ser seu dever discipliná-la; a segunda por ser mulher e escrava. As surras que Dana levavam também compreendem a ideia de incapacidade que existem na surra que Jamie deu em Claire. Se mulheres deveriam ser “ensinadas” por seus maridos uma vez que eram vistas como crianças, inaptas a tomarem decisões próprias e devendo ser sempre submissas; esse aspecto não era diferente com as escravas, cujas vontades deveriam ser inexistentes e a obediência, cega. 

“Existe uma coisa chamada justiça, Claire. Você agiu mal com todos eles e terá que sofrer por isso. - Respirou fundo. - Sou seu marido; é meu dever resolver isso e é o que pretendo fazer.
Eu tinha fortes objeções a essa proposição em diversos níveis, qualquer que fosse a justiça dessa situação - e eu tinha que admitir que em parte ele tinha razão - meu senso de amor-próprio ofendia-se profundamente diante da idéia de levar uma surra, por quem quer que fosse e por qualquer que fosse a razão.
Senti-me profundamente traída pelo fato de que o homem do qual eu dependia como amigo, protetor e amante pretendesse fazer tal coisa comigo. E minha noção de autopreservação estava aterrorizada diante da idéia de me submeter à compaixão de um homem que manejava uma espada de sete quilos como se fosse um mata-moscas.
- Não vou permitir que bata em mim - disse com firmeza, agarrando-me à coluna do dossel da cama. - Ah, não? - Ergueu as sobrancelhas ruivas. - Bem, vou lhe dizer, menina, acho que não tem muita escolha. Você é minha mulher, quer goste ou não. Se quisesse quebrar seu braço, deixá-la a pão e água ou trancá-la num quartinho por vários dias - e não pense que não me sinto tentado -, eu poderia, quanto mais esquentar o seu traseiro.” (Outlander- A viajante do tempo)

Entretanto, enquanto podemos listar como duas as surras obviamente resultantes da sua condição de mulher para Claire; são inúmeras as vezes que Dana apanha devido a sua condição de mulher negra, incontáveis humilhações que ela precisava aguentar calada para sobreviver. Octávia retrata a crueldade de um período que por mais queiramos esquecer, devemos nos esforçar para lembrar para que ele nunca mais se repita. Nas palavras da própria Dana, “(...) Não sabia que as pessoas podiam ser condicionadas com tanta facilidade a aceitar a escravidão.”



Octávia e Diana são escritoras com uma capacidade de descrição assustadora. Se é possível encontrar uma amostra da opressão feminina nas páginas de Outlander, é evidentíssimo em Kindred a denúncia ao abafamento da dor e sofrimento da mulher negra: das surras, do trabalho exaustivo, dos filhos vendidos, das famílias separadas, das humilhações, da comida ruim, da dormida no chão imundo, do racismo abertamente aceito, da impotência para se defender, da ausência de voz, da usurpação de identidade, da imposição de inferioridade. 




Kindred é um livro triste, marcante, perturbador, porém necessário. Apresenta a escravidão com um víes tão estranho, tão confuso, que somos capazes de entender os pensamentos de Dana como manifestações navegantes entre uma espécie de síndrome de Estocolmo, um desejo por sobrevivência, e um sopro de rebelião.







Por Tuísa Sampaio






[1] Ambos, Kevin e Dana, eram escritores que se sustentavam por meio de sub-empregos, porém Kevin muitas vezes auxiliava Dana nos procedimentos de pesquisa, ensinava-a a ser proteger, e lhe fornecia informações extras. Ele era um espécie de Robin para o batman dela.

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2 comentários:

  1. Parabéns pelo site, pelos posts. Terminei a terceira temporada ontem, estou em choque até agora com isso tudo. Li o primeiro livro em 3 dias e agora já estou lendo o segundo. Estou magoada, parece que não consigo mais viver sem isso e já estou até programando minha viagem pra Escócia, preciso viver isso. Preciso conversar loucamente com alguém, mas ninguém que conheço assiste a série. 😏😏

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    1. Muito obrigada em nome de toda equipe Lallybroch e Outlander Brasil. Se você quiser encontrar pessoas para conversar sobre Outlander, entre em nosso grupo no face sobre a série: https://www.facebook.com/groups/sassenachsfc/

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